Sua Majestade, O Bardo

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Valença, Bahia, Brazil
Escritor, autor do livro "Estrelas no Lago" (Salvador: Cia Valença Editorial, 2004) e coautor de "4 Ases e 1 Coringa" (Valença: Prisma, 2014). Graduado em Letras/Inglês pela UNEB Falando de mim em outra forma: "Aspetti, signorina, le diro con due parole chi son, Chi son, e che faccio, come vivo, vuole? Chi son? chi son? son un poeta. Che cosa faccio? scrivo. e come vivo? vivo."

domingo, 10 de março de 2024

Eterna Tentação

 Eterna Tentação


Valença, 23 de agosto de 2021


O sentimento em número se transforma

Tens que caber nessa sequência

Pois obedeces a uma fixa forma.

Morte do Soneto – Ray Almeida


Lá fora, detrás da janela, explode o luar,

Com sua coleção de tulipas e nenúfares.

Explodem algaravias, amores e quasar;

Inspiração surgindo pelas veias e lugares.


Sento-me na escrivaninha, contemplo estelar

Paisagem para sonhos loucos e invulgares.

Busco a poesia que inflama todo esse ar,

Com sua coleção de fogueiras nos altares.


Minhas mãos ardem p’ra escrever o poema:

Não me falta vernáculo, pergaminho e tema.

Só me falta a forma p’ra expressar a canção.


Contudo, apesar conhecer tanto meu ofício,

Nunca escapo dessa armadilha do artifício:

Escrever um soneto é uma grande tentação…


Uma Tarde Qualquer…

Uma Tarde Qualquer…


Valença; 18 de outubro de 2023


Nas confusas redes do seu pensamento,

Prendem-se obscuras medusas.

Morta cai a noite com o vento.

Marinheiro sem mar – Sophia de Mello Breyner Andresen


O poeta Melhor bebeu suas casas

em todos os bares da cidade,

a cada trago uma porta, uma janela:

em cada poema acolhia a arte.

O poeta Melhor – Aleilton Fonseca


I

Um céu azul,

Quase anil…

Um céu límpido

De fim de tarde,

Onde os sonhos voam

Pelos tons pálidos

Dessa imensidão,

Como fantasmas gélidos de nuvens. 


Um céu azul,

Quase anil… 

Um céu sólido

Antecedendo

O crepúsculo,

Onde velhas mágoas

Velejam singelas

Pela imensidão,

Como sinos tenebrosos do passado.


Um céu azul,

Quase anil…

Um céu mágico

De feérico arrebol,

Onde a esperança

Graceja vistosa

Pela imensidão,

Como um arcanjo perdido no tempo.


II

Mas nesse céu azul,

Em que todos os poemas

Olha para mim e conspiram,

Poemas que perscrutam

Meu coração sossegado,

Ficam a me perguntar

Quando começarei a recolher

Esses sonhos esparramados,

Essas mágoas escondidas,

Essas esperanças dispersas,

E deixarei a poesia fazer sua catarse

Com todo esse material abundante

Que se oferece para meu versejar.


Mas hoje eu estou cansando,

Estou muito cansado da vida

E das grandes perguntas

Que movem o universo!

Na mesa boêmia do bar,

Quero apenas contemplar

Os mistérios das musas

E os feitiços das mulheres.

Os sonhos? As mágoas?

Es esperanças? Elas que esperem

Um outro poema para serem cantadas.


Hoje, em meio a uma anônima tarde

De um século de líquidas emoções,

Ficarei sozinho nessa minha mesa do bar,

Admirando como um poeta profissional

As ousadas curvas femininas,

Sob esse céu azul, quase anil…


Sermões sobre o Século XXI

Sermões sobre o Século XXI

Valença, 15 de novembro de 2023

Aqui tudo parece
Que era ainda construção
E já é ruína
Tudo é menino, menina
No olho da rua
O asfalto, a ponte, o viaduto
Ganindo pra lua
Nada continua (…)
Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da Ordem - Caetano Veloso

I
Século XXI, eis que você se apresentada…
Não estamos viajando pelas estrelas
Nem correndo com carros atômicos.
Ainda não escravizamos os robôs,
Não alcançamos o ócio libertador,
Não respeitamos o seio de Mãe Gaia,
Não alcançamos a harmonia mundial,
Não falamos a língua dos anjos e dos homens,
Não achamos a cura do câncer e da maldade,
E nem alcançamos o fim do flagelo da fome.
A Utopia de Aquário não chegou
E mesmo assim você, Século XXI, se apresenta
Como um pesadelo vampírico de modernidade.
E o que você tira de sua cartola?

II
A palavra é o emoji
E ela perdeu o seu sentido.
O que somente importa é:
A tela piscando!
O corte dos vídeos!
A postagem do twitter!
O espaço instagramável!
A obsolescência programada!

Mas nós perdemos a poesia de uma borboleta
Cruzando o vento como uma bailarina graciosa.
Perdemos a sabedoria de se esperar alguns minutos
E assim não entendemos a lentidão de uma semente.
Não temos resiliência e não conseguimos compreender 
A alternância entre tempestades e calmarias nas marés.

Tudo é jovem e contemporâneo, 
tudo é líquido e instantâneo.
E ainda assim é ruína sem sentido.

E por mais que se traduza os genomas complexos,
Por mais que enlace o planeta com fibras ópticas,
Por mais que todos estejam conectados em rede,
O que existe é a solidão de uma vida inútil,
Guerras sempre florescendo nas periferias
E Cérberos telemáticos dilapidando a esperança.

III
Mas mesmo assim,
No meio desse deserto de bits e bytes,
Uma flor rebelde ousa
Erodir as telas dos celulares:
Ela anunciará minha sonhada aurora,
Despertar escarlate de fraternidade e empatia.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Lugares mágicos



Alguns lugares nas ficção mereciam existir na vida real... São como pátrias perdidas de um  coração exilado. Por exemplo:


  • Pasárgada (aquela de de Manuel Bandeira)
  • Capital do Planeta Eternia, Castelo de Graysskull e a Montanha da Serpente
  • Os planetas da série Duna
  • A cidade de Innsmouth (Lovecraft)
  • Sítio do Picapau Amarelo
  • Asteroide B612
  • Os planetas da série Star Trek (especialmente Vulcano)
  • Os planetas da série Star Wars
  • A Ilha Paraíso / Themiscyra (Mulher Maravilha)

Relação de meus livros em 2024

Relação de livros de Ricardo Vidal 
(14 de fevereiro de 2024 - Noite de São Valentino)

Livros prontos para publicação

  1. Estrelas no Lago (poesia) - publicado em 2004. 2º edição aumentada 
  2. Brumas no Lago (poesia)
  3. Torre de Quimeras (poesia)
  4. ** Pergaminhos Bárbaros (reunião dos três livros citados logo acima) - no prelo
  5. Sombras do Luar (poesia)
  6. Flores do Outono (poesia)
  7. ** Papiros Exóticos (reunião dos dois livros citados logo acima)
  8. Fogos de Beltane (poesia)
  9. Ouroboros de Mármore e Cedro (poesia)
  10. ** Palimpsetos Selvagens (reunião dos dois livros citados logo acima)
  11. Farois além do Tempo (poesia)
  12. Jardim de Estrelas (poesia)
  13. ** Papeis Peregrinos  (reunião dos dois livros citados logo acima)
  14. Codex Arcanun (reunião de poemas ligado ao Ciclo das Ninfas)
  15. Polígonos: contos e estórias (contos)
  16. Prosas Bárbaras (miscelânia de crônicas, poemas em prosa, crítica e notas)
  17. Grilhões de uma Época Insana (roteiro de curta-metragem)
  18. Um Retrato na Parede (monólogo teatral)
  19. *** Códice Vidaliano I (reunião de todos meus poemas)
  20. *** Códice Vidaliano II (reunião de meus textos em prosa e teatro)

Livros semi-prontos, faltando revisão final

  1. Peregrino en una Noche sin Luna (poesia - inglês e castelhano)
  2. Dicionário da Literatura do Baixo Sul da Bahia (dicionário literário)
  3. Uma Literatura em Supernova e outros Ensaios (ensaios de literatura e crítica cultural)
  4. Até Segunda Ordem (monólogo teatral)
  5. As Corujas de Frei Ethereld (peça teatral)

Fragmentos de livros

  1. Encruzilhada (romance)

Sugestão de capas de livros










 

Sete anos depois...

 A vida deu muitas voltas e hoje eu apareço no meu velho castelo. Tantas teias de aranhas, tanta poeira. E ainda assim, sinto que aqui é o meu lugar...



terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Encruzilhada - Prologo

ENCRUZILHADA - Romance de amarguras e desencantos

 DEZEMBRO DE 2005 (Prólogo)

A VENEZUELA ENTRA COMO MEMBRO 
PERMANENTE NO MERCADO COMUM DO SUL 


– Quem nasce em Passagem das Antas é o que? Só pode ser um ANTÔnio. – Não havia um encruzilhadense (ou mesmo alguém do Norte de Pindorama) que não iria rir esse chiste com o antigo nome da cidade. Ele ficava engraçado quando era dito por Hector, tetraneto do fundador da cidade, Coronel Antônio Dantas. E o cúmulo do humor era quando Hector a contava no momento que seu primo paterno, Antônio Dantas Porto, servia aos comensais o Filé Alto e os mojitos, no terraço iluminado do Bistrô Port Antoine, tendo o Rio das Antas à frente.

– Vá procurar um jegue viúvo na praia, Barão. – Antônio jocosamente ralhou com seu primo e se virou para Rosinha – Como é que você guenta essa disgrama inútil em casa? Você… (Preste atenção, Rosinha. Muita atenção no vou te dizer) VOCÊ merece o CÉU! PORQUE conviver com Barão todo dia deve ser dose pra LEÃO! Seu caso é de canonização imediata e súbita em vida!…Você será Santa Rosinha da Paciência Infinita! – e ao final, persignou a mesa como se fosse um frade abençoando a gulodice alheia.

A mesa toda explodiu em gargalhada. Artur, filho do casal, quase se engasgou enquanto dava a primeira mordida no filé. Ângelo virou-se timidamente de lado para rir, escondendo malmente o rosto como se tivesse vergonha em se divertir com a chalaça. Aníbal jogou a cabeça para trás esmurrando repetidamente a mesa enquanto gargalhava histrionicamente. Rosinha encarou zombeteiramente o marido e deu-lhe um beijo, dizendo entre risos e carinhos:

– Liga não, meu Aristogato, que sempre estarei em sua vida, aconteça o que acontecer. E se eu te aguentei até agora, posso te aguentar mais alguns anos! Minha paciência é infinita, não é?! – e afagava a cabeça do marido.

Hector olhou cinicamente para seu primo (que já se retirava para atender as outras mesas do Bistrô), mirou para cada um dos comensais na mesa, encarou especialmente o filho (que ainda chorava de rir enquanto tossia ao mesmo tempo) e sem nenhuma outra opção, também soltou sua gargalhada serena. Não haveria nada naquele momento que poderia mudar seu humor naquele jantar de fim de ano. Depois de mais de dez anos a “confraria” voltava a se reunir em Encruzilhada.

Hector de Aragão Dantas e Fonseca fora o último a se restabelecer em Encruzilhada, com o falecimento de pai em julho de 2005. Antes dele, Dr. Aníbal Barcelos de Cartaxo trabalhava na ala psiquiátrica da Santa Casa de Misericórdia de Encruzilhada desde dezembro de 2004, após seu pai, Amílcar Barcelos (atual provedor da Santa Casa) manobrar as contratações de forma satisfazer a vontade do filho que teimava em voltar para lá. Ângelo Mitrani Angelini fora o primeiro a retornar, pois desde 2003 trabalhava como funcionário concursado na terceira Inspetoria Estadual de Educação e Cultura.

A conversa seguia tranquila na mesa. Hector se sentara, na cabeceira, ficando sua esposa Rosinha no flanco direito e seu filho Artur no flanco esquerdo. Comentava animado sobre a consequência da entrada da Venezuela no Mercosul como membro permanente.

Hector emanava uma liderança natural na mesa, com seus 90 Kg distribuídos em corpo levemente roliço de 1,72m. Não negava o sangue – afinal, era o último de várias gerações de políticos e notáveis da história da Encruzilhada, tanto pelo lado materno quanto paterno. Do pai, Dr. Marco Aurélio del Pilar Fonseca, era descendente primogênito (de linha sempre pura e varonil) da família de Pitágoras Pancrácio Barros da Fonseca, o heleníssimo Barão da Fonseca – magistrado e fazendeiro capixaba que se estabelecera na região pelas calendas de 1887. Desse tronco se entroncam os principais intelectuais progressistas da cidade. Da mãe, D. Cleópatra de Aragão Dantas, era cria do venerando Coronel Antônio Santiago Dantas (também conhecido como Antônio “das Antas” pelos seus adversários políticos), militar e fazendeiro baiano que em 1885 comprou a Fazenda da Passagem e fez construir em Rio de Antas uma capela votiva para Santo Antônio – ponto de partida do município de Encruzilhada e do clã que a governou por mais tempo. Era irônico imaginar que, apesar do barão e do coronel serem concunhados, ambos geraram duas greis antagônicas na política local, cuja reconciliação deu-se em 1968, quando o varão dos Fonseca se casou com a princesa dos Dantas (embora continuasse, de forma latente, a velha divisão partidária entre “Gregos” liberais – que seguiam a família Fonseca – e “Antas” conservadores – que seguiam a família Dantas). O próprio Hector, na época de estudante, mostrou suas qualidades no movimento secundarista, como presidente da União Municipal dos Estudantes Secundaristas e do Grêmio Estudantil Olga Benário Prestes, do Colégio Batista de Encruzilhada – além de ser presidente da seção local da Juventude Socialista do PDT. No entanto, a despeito dessas paixões atávicas que animavam sua índole, ele é um homem centrado, calculista e cordial, mais voltado a outros desafios que atiçasse sua mente, como é, atualmente, modernizar a velha Fazenda do Barão, que ele e seus meios-irmãos gêmeos Igor e Ivan Oliveira da Fonseca herdaram. Por hora, sentia-se feliz em comandar aquele jantar.

Sentado ao lado de Rosinha estava Ângelo, com um sorriso melancólico e olhar funéreo no canto do rosto taciturno. Mesmo com a risada e estando entre velhos amigos, era o menos descontraído e por isso mesmo era quem mais bebia os mojitos. Mas esse silêncio terminou quando começou a citar de memória várias informações referentes ao Mercosul: Declaração de Foz de Iguaçu; Tratado de Assunção; Protocolos de Brasília, de Olivos e de Ouro Preto; estrutura da organização; índices socioeconômicos, relações com a Comunidade Andina. Também fez análises da relação do Mercosul com a natimorta Área de Livre Comércio das Américas e a Alternativa Bolivariana para as Américas e ponderações ideológicas sobre a entrada de Chávez no grupo. Por essas e outras que Artur chamava Ângelo de Tio Google.

 Ângelo tem sangue italiano por parte de pai e judeu sefardita por parte de mãe, distribuído em um corpo delgado, com traços de um moreno mediterrâneo e rosto levantino. Cresceram sob a égide de uma educação tradicionalista, castradora e rígida, às vezes com uma frieza nas relações interpessoais que deixou cicatrizes em sua alma sensível. Nascera para ser um intelectual e sempre procurou se cercar de livros, mas trazendo o sinal indelével de que viveria em um permanente exílio pessoal. Da mãe, Esther Malka Mitrani, descendente de judeus mortos durante a Segunda Guerra Mundial, trazia a melancolia dos guetos e a resignação de quem nunca foi bem vista pela família do marido. O pai, Dante Borges Angelini, homem honrado e trabalhador, sempre teve a necessidade de se firmar como um chefe da família autocrata, através de atos duros e paternalistas, economia nos elogios e fartura nas críticas. Tentava assim contrabalancear a educação mais refinada que sua esposa, de certa forma, passava para seu filho único – Dante queria moldá-lo a sua imagem e semelhança, nas virtudes, e nos vícios, nem que fosse a marteladas. Diante disso que Ângelo escondia sua tristeza sendo a pessoa prestativa e sempre transmitindo otimismo para seus amigos. Essa generosidade poderia ser vista na forma como compartilhava suas informações na mesa: sem ser pedante, mas preciso nos dados. E humilde em reconhecer algum equívoco cometido.

Sentando em oposição a Ângelo, Aníbal segurava seu copo de mojito como uma pantera sedutora. Discretamente se inclinava para a direita e fazia sutis meneios de cabeça, para observar com mais calma outra mesa atrás de Hector, onde duas onças pintadas no cio também o despiam com desejo – esperando o momento certo do bote. Mas, como bom mestre dos encantos, Aníbal disfarçava a caçada e intervia nas conversas trazendo sempre uma visão diferente, inovadora. Conjecturou sobre uma possível evolução do Mercosul como União da Nações Sul-Americanas, mostrando as possibilidades de, em curto prazo, a Bolívia vim a pedir sua admissão no bloco, em lugar da ALBA do Chávez.

Aníbal era o único dos amigos que não nasceu realmente em Encruzilhada. Era rebento de Nova Lisboa, cidade das Serras Ocidentais de Pindorama, mas viera para lá ainda criança, quando seu pai assumiu um cargo na Secretaria Municipal de Saúde na cidade vizinha de Senador Sena. Sendo um filho de autoridade, sempre teve o comportamento mais rebelde dentro da turma, sinal claro de um espírito livre que propunha as maiores aventuras para a “confraria”, convencendo a todos com seu jeito magnético. Não tendo o senso de liderança de Hector e nem a vastidão intelectual de Ângelo, Aníbal completava a troika com sua criatividade e sua sedução inata. Isso acontecia naquele momento, o mesmo tempo que embebecia a todos na mesa com seu discurso e atraia a atenção das garotas da mesa vizinha.
A conversa seguia animada sobre atualidades quando Antônio Porto voltou para a mesa trazendo uma bomba. Limpou a mão no avental e pegou uma cadeira vazia de uma mesa próxima para se sentar com o grupo. 

– Vocês que sempre se meteram em política e são do partido do governador, acabei de ouvir uma notícia de primeira mão. Olhe só: Tanto o prefeito Adolfo Somoza como seu vice Benito Franco, os dois foram CASSADOS! Já saiu no diário oficial o pé na bunda do Grego! E se acha que falta pimenta no vatapá, preparem a goela: O ministério público acatou as denúncias de crime eleitoral contra o OUTRO candidato, Ananias César Mourão, que corre o risco de, SE assumir, NÃO concluir o MANDATO! Já pensou como deve está fervilhando o Covil das Antas, ao ver que mesmo ganhando, não levarão a prefeitura? – E se aproximou de Hector, falando mais baixo e perguntou seriamente para o primo – E aí, Barão? Caso também o Malvado Ananias seja degolado pela justiça eleitoral, como ficará Encruzilhada nessa história toda? Será que o candidato do seu petezão, que ficou com menos votos que os brancos e nulos, assumirá a prefeitura? Ou será que a eleição será anulada? Dizem que por aí que isso tem dedo de Trajano Nunes com vistas na reeleição do ano que vem…

Nessas horas os olhos dos três amigos brilharam… Nunca imaginaram uma situação dessas na pacata e previsível vida encruzilhadense, em que grego e antas, pela primeira vez na história, estarão fora da prefeitura. O ritmo da conversa foi toda voltada para as análises e implicações daquela notícia. E não era para menos: o ano de 2004 ficou marcado com o da eleição municipal mais tumultuada em Encruzilhada, recheada de denúncias e acusações mútuas e lances rocambolescos que tornava impossível não haver um segundo ou terceiro turno na justiça. E os possíveis cenários que se vislumbravam para 2006, resultantes do desdobramento das ações do Judiciário, abriam um leque sedutor para o xadrez verbal que os amigos sempre cultivaram entre si. Apenas Artur ouvia isso com indisfarçado tédio adolescente de quem está cansado de presenciar as intermináveis conversas sobre política entre pai e seus tios emprestados…

…………………………………………

O terraço continuava iluminando pela lua cheia e pelos holofotes na porta do sobrado colonial onde o Bistrô Port Antoine fora instalado. No primeiro andar funcionava a cozinha, o escritório e o restaurante VIP, enquanto no térreo onde ficavam o lounge, o bar, a pista de dança e o pequeno palco para os músicos e eventuais comediantes de stand up que Antônio contratava, para animar a casa e dar um pequeno ar de sofisticação à cidade. E por não ter concorrentes a altura, o Bistrô Port Antoine era onde desfilava a pequena elite tacanha e provinciana de Encruzilhada. 

Morgana Malaparte Macieira, diretora geral do Hospital da Santa Casa de Misericórdia (motivo pelo qual passou a ser chamada de Doutora Macieira na cidade, não obstante seja apenas Mestra em Saúde Coletiva), entrava no restaurante junto com seus três filhos – Jessé, José e Joana, vindos da missa, para tomar seu imutável caldo verde das noites de sexta-feira. Ao avistar Aníbal no terraço, falsamente o cumprimentou com morna alegria. Porém, ao ver Dr. Segismundo Frota saindo com uma de suas “sobrinhas da capital”, ela largou de mão sua habitual dissimulação, saudando friamente o seu rival. Por isso que Morgana prontamente se apressou a sentar-se numa cadeira no fundo do bistrô e agradeceu a Deus que Dr. Frota já estivesse de saída naquele momento. Para ela, partilhar o ambiente social com ele era como macular sua putativa imagem de santa esposa fiel, cujo marido trabalha na extração de petróleo em alto mar, pela Petrobrás.

Dr. Segismundo Frota, chefe da ala psiquiátrica do Hospital, acabara de sair do restaurante e quase que se persignou (embora fosse um agnóstico convicto) quando vira sua adversária no ambiente de trabalho. Discretamente, tomou a pílula azul e um antiácido – afinal, até a visão dela lhe provocava azia e disfunção erétil. Não, ele não iria se permitir que Morgana estragasse sua noite – afinal, pagara caro pelas acompanhantes. Seus modos sinceros não se coadunavam com a hipocrisia e o arrivismo de Morgana, de quem sabia o quão maquiavélica poderia ser no uso despudorado do corpo para conseguir seus objetivos. Logo ele, que fora contratado a peso de ouro exatamente pelo seu currículo médico, não pelas horas de cama bajulando alguém. No mais, era um dos poucos da cidade que se dava ao luxo de beber boas garrafas de vinho no Bistrô e pedir os pratos mais sofisticados, como um jambalaya ou fricassê de mariscos. Constantemente trazia prostitutas de luxo da capital, que contratava para passar alguns finais de semana com ele. Segismundo não teria motivo nenhum em admitir de que usava esses serviços (afinal, estava divorciado e livre), mas aprendeu rápido como funcionava a hipocrisia da cidade, assumindo então o papel de tio liberal e generoso, a receber as muitas “sobrinhas” para visitas de “aconselhamento”, caso que não quisesse aborrecimento.

Luísa Campos de Oliveira, na condição de nova viúva alegre da cidade, estava sorvendo seu cappuccino em uma mesa solitária no fundo do bistrô – estrategicamente distante do seu enteado Hector. Benito Franco, ainda usufruindo seus últimos instantes como vice-prefeito, a observava de longe. Pouco importava se ela era a viúva de seu padrinho político, (falecido em julho desse ano), ou que ele era casado – ele queria meter as mãos e outras coisas naquele corpo lindo de mulher madura, queria gozar dos prazeres mundanos e secretos com aquela potranca ancuda. Os dois, discretamente, mantinha uma comunicação pelo olhar e planejavam o encontro clandestino a ser realizado mais tarde, em algum rendez-vous.

Acácio Silva dos Santos, chefe da Inspetoria Estadual de Educação e Cultura, se mostrava perdido dentro bistrô. Ele se contentaria em comer pizza de presunto na Firenze’s ou mesmo uma boa moqueca de cação no Restaurante do Quinha. Mas a sua esposa queria porque queria está lá, no meio daquele simulacro de high society e lá se encontrava, sem saber se escolhia o diabo do filé alto ou do fica-não-sei-o-quê de camarão. Sentia falta de sua cerveja Urso Polar de dois contos, que costuma beber no cais, na hora do almoço. E não iria se demorar no Bistrô, pelo jeito que andava o jantar…

Os donos do Colégio Batista de Encruzilhada, professores Maria dela Fiori Angelini Brasil e Francisco Moura Brasil entraram no bistrô e foram falar com os ex-alunos no terraço. No sobrinho Ângelo, o abraço foi mais forte que nos demais e ainda teve direito a apertão na bochecha. Mas Ângelo não se enganou com a rara afetuosidade de seus tios paternos. Menos que os laços de sangue que os donos do colégio pregam, era mais a necessidade de uma certidão na Inspetoria que impelia essa exagerada demonstração pública de apreço. Na outra semana ele trataria o assunto com calma, embora sua ética profissional condenasse o uso desses artifícios. E viu sua tia se sentar longe, já esquecida da presença do sobrinho no ambiente.

Os representantes do Estaleiro Álvaro de Campos, Sr. Reis e Sr. Caeiro, estavam em uma mesa no canto, em um jantar de negócios com Zeca Brito, presidente da Câmara de Vereadores de Encruzilhada, discutindo a instalação do empreendimento na cidade. Eles estavam cientes das mudanças políticas que Encruzilhada passaria, por isso que começavam a procurar outros interlocutores no município, para negociar a instalação do empreendimento e disputas pequenas de poder não poderiam contaminar a transação. A cidade foi uma escolha estratégica: uma boa enseada dos Frades, onde fica a foz do Rio das Antas e, além da cidade ter um porto fluvial de médio porte, a enseada fica próxima ao Terminal Marítimo Norte de Porto Real. Contratempos advindos de mesquinharias políticas de província não poderia atrasar esse empreendimento. Logo, os executivos do Estaleiro tentavam um acordo com a pessoa influente mais estável do poder municipal no momento, caso necessitassem de algum “favor extra”. O jeito simplório e sincero do vereador social-cristão davam esperanças para esses executivos. Afinal, um dos poderes mostrava mais facilmente influenciável em prol da instalação da indústria – principalmente diante das maletas de suborno.

Os pais de Aníbal, Dr. Amílcar Barcelos de Cartaxo e D. Helena Torres Barcelos de Cartaxo, estavam na capital do estado, participando de um evento com o secretário estadual de saúde. Por isso que os colares e brincos de D. Helena não reluziram naquele dia no salão de dança do bistrô, como eles costumam ostentar toda a semana naquele ambiente. Não reafirmarão discretamente e pela enésima vez o fato de que, por serem de outra cidade, já era condição mais do que suficiente para estarem em uma situação diferenciada aos demais matutos daquela província. Mas não era nada que manchasse a carreira de filantropos beneméritos que os Barcelos de Cartaxo consolidaram junto à sociedade encruzilhadense.

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A lua, no seu zênite, indicava que já chegara à meia-noite, hora do feitiço se desfazer e da carruagem voltar a ser abóbora. No bistrô restavam as mesas de Hector, Ângelo e Aníbal e a das duas onças pintadas. Encruzilhada era uma cidade ingrata aos boêmios e os meninos ainda não se acostumaram com essa realidade. Aliás, se deram por achados que Antônio Porto montou um restaurante que está mais próximo ao que frequentavam em Santa Cruz e Porto Real, na época que estudaram nas universidades. Muitos outros hábitos eles ainda se amoldando, alguns com falta de vontade, outros, com tranquilidade.
Com as contas devidamente pagas, Aníbal chamou Ângelo:

– Deixe que eu te leve para casa, Angelini. Entre aqui no meu calhambeque, que é caminho para mim.

– Obrigado, obrigado, mas prefiro seguir pela rua. –Ângelo declinava do convite, ainda envergonhado – Eu preciso caminhar um pouco e essa hora da noite a cidade é mais tranquila… Depois, vi seus olhares… para a outra mesa. Não, não que-quero te atrapalhar.

– Por isso mesmo que eu QUERO que você venha COMIGO – retornou insistente Aníbal – São duas mulheres lindas. Dá para dividirmos muito bem entre nós dois, sem problema…

Uma parte de Ângelo até queria ir com o amigo, mas a timidez era maior e com dificuldade conseguiu dissuadir o amigo em dar-lhe a carona.

– Você é quem sabe, Angelini. Depois não diga que eu não te chamei – e virando para Hector, que já acomodava a família no Hilux – Barão da Bola, se eu não conhecesse bem sua esposa, juro que te chamava agora mesmo para ir ali comigo, para… hããã… con-conversar… hããã… sobre… você… você sabe… – gaguejava enquanto olhava matreiramente para Rosinha, que sacava qual era a entrelinha da conversa marota.

–Doutor Aníbal, você está cansado de saber que eu sou um maníaco sexual assumido – brincou Hector, encostando a Hilux na Pajero do amigo – Há mais de vinte anos que eu pego a mesma mulher todos os dias, hehehehehe…

Ainda se ouviu a tapa recebida por Hector em seu ombro devido ao gracejo. Rosinha intimamente adorava ouvi-lo fazer aquela graça e sabia o quanto tinha de verdade nela, mas não poderia permitir publicamente que seu esposo falasse nesses tons – principalmente na frente do filho. Por sua vez, conhecendo por osmose a velha piada sem graça, Artur nem prestou atenção, mais interessado estava em jogar paciência no celular de seu pai. A Hilux seguiu para a ponte, tomando a direção da Fazenda do Barão, onde o agrônomo Hector se estabelecera.

A Pajero do psiquiatra e psicólogo Aníbal subiu em direção da Praça Tiradentes, para se encontrar com as duas panteras do bistrô e de lá, seguirem para sua casa, fazer um tipo de festinha particular que a elite de Encruzilhada ficaria visivelmente chocada de ouvir e intimamente invejando em praticá-la.

Somente o arqueólogo e historiador Ângelo seguiu a pé pelo cais fluvial. Na sua boemia bem etilicamente particular, jogou a boina na cabeça e ainda ficou contemplando a lua por mais alguns minutos. Tinha no bolso uma garrafa pequena de vinho do Porto. E caminhando pela orla aos ziguezagues, ele observava aquela cidadezinha espremida entre um rio e dois morros. Como estava lá desde 2003, já percebeu que o vento trazia para seus ouvidos o silêncio que escondiam muitas máscaras, muitos teatros sociais e quase nenhum conteúdo moral. Pensou ele nos diversos fios dessa trama e não reprimiu um riso sardônico quando passou em frente à Boate Biskate, no final do cais. Dois vereadores saiam de tonta, carregados por duas prostitutas, em direção a algum beco mais escuro. Uma travesti, com roupas finas e maquiagem pesada, fumava debaixo da luz vermelha da entrada da boate. Outras prostitutas estavam no lado de fora, conversando com o policial militar a paisana. Estariam pagando alguma comissão pela segurança ou ele aproveitava a folga para se divertir um pouco? Ângelo pensou em entrar e pagar uma meretriz para se esquecer do mundo por duas horas. Bebeu mais um gole do vinho do porto e sentiu os pés se afofarem nos sapatos. Ainda viu os gêmeos Igor e Ivan dirigindo o jipe de seu falecido pai e chegarem à porta da boate com duas mulheres, entrando o quarteto no inferninho. Pelo visto, eles já haviam bebido tudo o que tinha de beber e estavam devolvendo as duas putas com quem tinham saído mais cedo. Será que eles chegarão antes que sua mãe Luísa voltasse da noitada com seu novo amante? Como Ângelo não era de fofocas e futricas, ele seguiu em frente, deixando para trás os galantes herdeiros de dívidas, respeitáveis políticos, nobres usurários do comércio e notórios latifundiários torrarem o dinheiro com aquelas messalinas sifilíticas. Parou um pouco e vomitou junto ao poste de luz o excesso de álcool que tinha ingerido na noite. E deixando para trás a poça azeda, observara que uma jovem enfermeira morena passava em passos rápidos para casa, como se tivesse pressa em não ser confundida com uma alguma hetaira de esquina. Ainda tonto e encostado na balaustrada do cais, Ângelo reconheceu a terna figura de Roxana Cruz dos Santos naquele vulto fugidio. Não teve tempo e nem estava em condições de acenar para ela. Numa outra ocasião, falaria com aquela sua amiga inteligente e esforçada. Olhou mais uma vez para o relógio e foi direto para casa na Rua Tomás de Torquemada. Afinal, mesmo morando em andares diferentes, aquela era a casa de seu avô, o velho e querido relojoeiro Salomão ben Mitrani, e não poderia chegar muito tarde e bêbado lá… 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Amizade em Tempos de Radicalismo

Amizade em Tempos de Radicalismo

Salvador, 22 de dezembro de 2016 (23h38)

Querida ex-colega da FACOM

Hoje, enquanto acessava o Foicebook (Fernando Morais é quem está certo!), o mesmo sugeria a ti como possível amiga. Lembrei-me dos tempos em que fomos colegas no curso de Jornalismo da UFBA, de sua inteligência, das conversas que tivemos no pós-aula – nós dois calouros: você atriz e roqueira e eu um bicho do mato recém-chegado a capital e cheio de poemas na sacola. A saudade bateu forte e a vontade era te adicionar. Mas não dava. È uma pena Tive que declinar da ideia. Nesses tempos de Intolerância e Radicalismo político, não dá para ter você como amiga de foicebook.

Desde o Twitter eu sei que você é uma antipetista e antiesquerdista feroz. Na verdade, já na época da faculdade sabia que você não morria de amores pela esquerda e no tempo do Orkut você admirava o cretino do Diogo Mainardi. Nada de errado com isso. É a sua cabeça, suas convicções e eu a respeito por isso. Da mesma forma que na minha cabeça eu prefiro o socialismo e desde meus 17 anos eu sou filiado a um partido de esquerda e não tenho (até agora) pretensões de desfiliar-me dele. Não espero sua aprovação pelas minhas escolhas (afinal, elas foram feitas antes nos conhecermos) nem quero ficar na posição de avaliar as suas escolhas políticas. Contudo, sei que, no clima atual, é complicado. Será que nós iriamos nos suportar na militância digital, cada um postando mensagens políticas contrárias? E considerando que faz muito tempo que não nos vemos pessoalmente, não deu para criar um muro afetivo que evite os atritos ideológicos.

Penso nisso porque estamos em uma época de radicalismo e intolerância política acentuada pela visibilidade do pensamento causado pela internet. As redes sociais, elas parecem que tiraram as antigas travas morais que as pessoas tinham no trato público e tem permitido expor claramente o que as pessoas pensam. E aí, em lugar de pessoas cordatas e com bom senso, o semianonimato e “liberdade” da internet têm mostrados pessoas mesquinhas, preconceituosas, monstros sem máscaras. Vemos as pessoas destilando racismo, sexismo, xenofobia e LGBTQ+fobia sem nenhum freio moral. É como se a internet transformassem Dr. Jekyll em Mr. Hyde sociais, cada vez mais encastelado nos seus radicalismos e na intolerância. E aí que vem a questão da amizade nas redes sociais.

Giorgio Agamben, ao retomar Aristóteles em seu ensaio “O Amigo”, fala da questão da alteridade. Um amigo é o outro com quem se “com-divide” a experiência da vida. E isso tem uma implicação não só existencial (torna a experiência da vida mais doce) como política (no seu sentido filosófico mais elevado). Politicamente, o amigo não é alguém quem pensa parecido, mas o outro com quem dialoga – mesmo tendo pensamentos antagônicos. É sentir conjuntamente a partilha da vida e assim procurar sínteses na pluralidade de ideias para uma existência mais doce e eticamente melhor no mundo.

Por isso, minha querida ex-colega, entramos em um impasse: a amizade precisa de um diálogo na pluralidade. Só que ela sobrevive a erosão causada nas redes sociais? Até que pontos nós queremos manter a amizade, queremos dividir nossa existência com pessoas cujo pensamento e a mensagem pode ser tão contrárias às nossas crenças? Até quando aguentaremos ver repetidas vezes a postagem eterna que destila a falta de diálogo? Como a intolerância pode tornar doce a experiência compartilhada do viver? É uma tarefa difícil em tempos de relacionamentos fluídos, minha querida… Não minto que de vez em quanto tenho feito algumas faxinas nos meus perfis nas redes sociais, para tirar os contactos daqueles que vejo que não há nenhuma possibilidade de diálogo produtivo.

Por isso, minha amiga, em entrei no seu perfil no foicebook e vi algumas de suas fotos – vi poucas atuais, muitos de seus recortes de jornais. E fechei a aba do meu navegador, com o desejo de que esteja tudo bem contigo. Lembrarei com carinhos das nossas conversas. Se quiseres conversar sobre qualquer coisa que não seja política, a casa estará aberta. Até lá, cada um siga gerenciando e postando o que bem entender nos seus perfis.


Abraços

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Ser Estudante

Ser Estudante…

Valença, 17 de julho de 1995

(…) Sei que a Mocidade
É o Moisés no Sinai,
Das mãos do Eterno
Recebe as placas da Lei(…)
O Século - Castro Alves

“Me gustan los estudiantes,
jardin de nuestras alegrias,
Son aves que no se asustan
de animal o policia
y no le asustan las balas
ni el ladrar da la jauria.
(……………………)
Que rugem como los vientos
cuando les meten al oído
sotanas o regimientos
pajarillos libertários
igual que los elementos”
Me Gustam los Estudiantes - Violeta Parra


Ser Estudante é ser Jovem no espírito!
É ter no sangue uma firme indignação
Ante as injustiças, a má-fé e a opressão;
Ter sempre, como tênue limite, o infinito.

Ser Estudante é ter n’alma a revolução.
É não se conformar co’a mediocridade.
É querer um futuro repleto de felicidade
É amar o Estudo do fundo do coração.

Ser Estudante é, em largo e profundo, crescer.
É aprender, numa sociedade,  a melhor viver
E desejar que no futuro, possa vencer.

Ser estudante é ter a Escola por Pátria; 
A Ousadia por eterno e querido guia

E por alma, sempre, sonhos e Poesia.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

A ESCRITA FEMININA COMO LITERATURA MENOR O CASO DE ANAIS NIN

a ESCRITA feminina como literatura menor: o caso de Anaïs Nin

José Ricardo da Hora Vidal [1]

1 Introdução

O objetivo desse artigo é discutir a escrita feminina como uma literatura, tomando como corpus os contos eróticos de Anaïs Nin. Para tanto, em um primeiro momento, será analisado o conceito de escrita feminina, tendo como base os estudos de Robin Lakof (2010), Nelly Richards (2002), Lúcia Castelo Branco (1991), Zilda Freitas (2002) e Nelson de Oliveira (2008). Depois, serão analisados como essa escrita feminina pode ser vista como uma literatura menor, tendo por base o texto de Deleuze e Guattari (2015). Finalmente, serão feitas as considerações finais.

Para uma melhor compressão do trabalho, faz necessário conhecer Anaïs Nin, escritora de expressão anglófona do início do século XX que se notabilizou pelos seus diários e escritos eróticos. Vivendo nos loucos anos 20 e casada com Hugh Parker Guiller, manteve uma vida sentimental bem movimentada, datando desta época o affair com o casal June e Henry Miller. E, foi através do seu amante (escritor de verve erótica), que ela começou a escrever os contos eróticos que viriam a formar os volumes “Delta de Vênus” (2006) e “Pequenos Pássaros” (2007) e no poema em prosa “A Casa do Incesto” (1991).

Na gênese de seus contos, Anaïs Nin conta que os escreveu inicialmente por encomenda de um colecionador anônimo, pagando um dólar a página e exigindo apenas que nos contos fosse cortada a poesia e ficasse apenas “o sexo clínico, privado de toda a calidez do amor – a orquestração de todos os sentidos, toque, audição, visão, paladar” (NIN: 2006, p. 8)[2]. Este fato, como ela conta no prefácio de “Delta de Vênus”, levou-a a observar que não existia uma tradição de escrita erótica feminina, fazendo- a concluir que

tinha a sensação de que a caixa de Pandora continha os mistérios da sensualidade da mulher, tão diferente da sensualidade do homem e para qual a linguagem do homem era inadequada. A linguagem do sexo ainda estava para ser inventada. A linguagem dos sentimentos ainda estava para ser explorada. D H. Lawrence começou a dar uma linguagem para o instinto, tentou escapar da linguagem clínica, científica, que captura apenas o que o corpo sente. (NIN: 2006, p. 9)

Diante dessa apresentação inicial e considerando os pontos que serão discorridos ao longo do artigo, uma reflexão sobre escrita feminina e literatura menor se faz necessária.

2 EScrita feminina: gênero literário ou poética?

Ao contrário do pode pensar o senso comum, a "escrita" tem sexo e este não se confunde com o sexo do autor. Conforme lembra Zilda de Oliveira Freitas, no seu ensaio sobre autoria feminina, "Na sociedade ocidental (…) a  dicotomia sexual é uma vivência inconfundível do fazer, do prazer, do saber, enfim, do ser" (FREITAS: 2002, p 116). Isso irá se refletir na no modo de produção literária, na medida como homens e mulheres se relacionam com o mundo através da língua.

Sendo a língua um dos elementos da socialização do ser humano, ela não mostrará "neutra", acima dos processos de dominação; Pelo contrário, ela se estabelece como um meio da expressão / dominação do gênero masculino sobre o gênero feminino. Robin Lakoff, no seu texto "Linguagem e lugar da mulher" analisa este fato, quando fala que

As mulheres experimentam a discriminação linguistica de duas maneiras: no modo como são ensinadas a usar a linguagem e no modo como o uso geral as trata; Ambas tendem (…) a relegar as mulheres a certas funções subservientes: aquelas de objeto sexual, ou serviçal, e, portanto, certos itens lexicais têm significados quando aplicados aos homens e ouros às mulheres, constituindo uma diferença que não pode ser prevista, exceto com referência aos diferentes papeis que os sexos desempenham na sociedade (LAKOFF: 2010, p14)

Como exemplo desta dualidade de significado apresentado por Lakoff está no uso corrente, em língua portuguesa, das palavras "vagabundo" e "cachorro". O uso do feminino desses dois vocábulos para descrever uma mulher sempre tende a ser mais ofensivo e negativo do que o seu correspondente masculino o é para os homens, uma vez que não só a rebaixa como ser social (imprestável, improdutivo, desprezível) como a sua própria feminilidade, como alguém promíscua sexualmente e realçando sua condição de objeto sexual do homem, abaixo mais ainda da já inferior situação que as demais mulheres já possuem na sociedade machista. Esse uso da língua como um meio de dominação entre gêneros vai se aprofundando na formação da identidade de cada indivíduo. Não apenas por já criar um modus operandi da línguas distinto entre homens e mulher, enquadrando que fala de trivialidades ou quem fala de assuntos sérios e assim alijando das tomadas de decisões um ou outro gênero, como imagina Lakoff, Mais além disso, há quase que um apagamento da diferença, de um outro gênero na língua quando um gênero é usado como a forma universal de se referir à realidade. Como bem observa Nelly Richards, “O neutro da língua, sua aparente indiferença às diferenças, camufla o operativo de ter universalizado, à força, as marcas do masculino, para convertê-lo, assim, em representante absoluto do gênero humano” (RICHARDS: 2002, p. 131). Esta discriminação do gênero feminino, que passaria a ser visto como um 'mero caso particular' do gênero masculino, 'legítimo' representante da totalidade dos seres humanos acaba implicando nos de como os discursos são feitos dentros dos espaços sociais. Assim, se dentro do espaço doméstico, particular, a mulher teria reservado um tipo de discurso próprio, o mesmo na se não no espaço público, local da tomadas das principais decisões sociais e por isso mesmo demarcado como reino do discurso masculino. Se no espaço doméstico existe a possibilidade de uma linguagem mais polida e sem lugar para explosões emocionais (que Lakoff atribui como uma das característica da fala feminina que a sociedade espera); no espaço público, esta fala feminina não terá vez, pois nao será forte o suficiente nos momentos de disputas que ocorrem nestes espaço. Diante das explosões emocionais que doravante possa ocorrer, a fala feminina, que ninca foi treinada oara isso, fenece e cede lugar ao discurso masculino, a muito treinado nesta lide, o que leva a afirmação de Cecil Jeanine Albert Zinani, que essa afirma que: "(…) a voz da mulher sempre foi silenciada, o que impediu desenvolver uuma linguagem própria" (ZINANI: 2006, p. 25). É a esta situação que Robin Lakoff fala em "bilinguismo" nas mulheres (em que, tendo que dominar um 'dialeto feminino' de uso privado e um 'dialeto neutro de uso público, acaba sem ter certeza plena de estar usando a norma certa na ocasião correta) e que Zilda de O. Freitas aponta como o dilema das escritoras, entre “(…) utilizar o discurso masculino é pôr em risco sua feminilidade. Não utilizá-lo é expor-se ao ridículo, ao falar em público” (FREITAS: 2002, p.118). Assim, a mulher escritora já se encontra numa situação de transgressão, de não só ser apropriar de um instrumento masculino criado para os propósitos masculinos como inscrever o corpo e a diferença feminina na língua e no texto.

Diante do fato de existir a diferença entre uma fala feminina para uma fala masculina, mister é compreender como elas irão se mostrar dentro da literatura. Estando a mulher enquadrada dentro do supergrupo das minorias, enfrenta já o problema que estas literatura possuem: as definições comumente apresentadas são “grosseiras e deselegantes”, que dificultam um debate.

Uma definição corrente de Literatura Feminina limita-se a circunscrevê-la no ambiente do gênero de autor, ou seja, aquela escrita por mulheres. E, como resquícios da diferenciação de ocupação dos espaços sociais (como pode se depreender das observações Robin Lakoff e Zilda de Oliveira Freitas) esse modelo de definição preconizaria as seguintes características: discurso confessional sobre os fatos e os fenômenos da vida privada, sobre da rotina doméstica, sobre o relacionamento com os homens em geral e com a família em particular. A literatura de autoria feminina, assim colocada, apresenta, segundo Nelson de Oliveira, um caráter restritivo que NÃO abarca toda a questão. O "feminino" é uma categoria mais ampla dentro da ficção, que chega até a ser independente do próprio sexo do autor. Em última análise, transforma a literatura feminina num gênero literário fechado similar à ficção científica ou literatura policial, com seus clichês pré-estabelecidos e padrões rígidos a serem esperados. No caso dos contos eróticos de Anaïs Nin, a não-aplicabilidade desta definição fica patente quando se observa uma diversidade de expressão e nuances temáticas e que estão anos-luz de se restringir ao discurso confessional sobre a vida privada.

Diante da fabilidade da definição anterior, Nelson de Oliveira apresenta uma definição mais ampla: Literatura Feminina seria uma "poética", ou seja, um modo de criação de literária aberto para expressão individual do autor. Seria como uma feminização da própria escrita, que mesmo não sendo exclusivamente restrita da mulher, mantém sempre uma certa relação com ser mulher. Esta escrita se traduziria como uma poética da transgressão ao discurso masculino dominante, apresentando-se como sua antítese dialética, ou pelo menos um meio de escape à dominância falocêntrica da língua. Em consonância ao proposto por Nelly Richard, que ver na feminização da escrita " uma erótica do signo" a extravasar o marco/retenção da significação masculina com seus excedentes rebeldes (corpo, gozo, heterogeneidade, libido, multiplicidade), desregulando a tese do discurso masculino (RICHARDS: 2002, p. 133), Nelson de Oliveira: compreende a literatura feminina (mesma forma que Lúcia Castello Branco) como é a escrita do gozo, dos mistérios, da fantasia exacerbada, do mergulho no inconsciente, dos segredos e das confissões, da loucura, construída frequentemente em torno do silêncio. É a escrita dionisíaca e noturna que se choca com o apolíneo e ensolarado racionalismo masculino (OLIVEIRA: 2008, p. 85). Lúcia Castello Branco apresenta como outras características da escrita feminina a procura de "fazer do signo a própria coisa e não uma representação da coisa" (CASTELLO BRANCO: 1991, p. 21). E como complemento as estas características, Cecil Jeanine Albert Zinani acrescenta que

A linguagem centrada na perspectiva da mulher se caracteriza-se por estabelecer um código que instaura um processo enunciativo de carater subversivo não só em termos de vocabulário como também de uma sintaxe específica que possa desconstruir o discurso masculino e estabelecer a diferença entre os sexos. (…) As estratégias utilizadas podem remeter para o significado original das palavras, revisar a constituição de vocábulos, especialmente através dos prefixos, reconceituar as metáforas utilizadas, recuperar as elipses. A leitura marginal concretiza-se, portanto, através de desvios que possibilitarão a percepção do Outro e a própria constituição desse Outro emergente em sujeito de um novo discurso. Ao se preocupar com a revelação da escrita feminina através das lacunas do texto, de certa forma, a autora recupera o princípio de que essa escrita revela-se através da história silenciada produzida pelo texto subjacente. (ZINANI: 2006, pp 35-36).

A literatura feminina está no plano da poética porque não apresenta fórmulas definidas para amoldar o texto dentro de plano preconcebido, pois ela busca sempre extrapolar todas as bordas, ir além dos limites. Antes, trabalha no próprio plano do signo para atingir a essência do texto, rasurando uma ordem prévia do discurso dominante "masculino" para desvelar uma outra perspectiva transgressora, a do olhar da mulher. Por ser mais um tom (na acepção cromática e musical do termo [CASTELLO BRANCO: 1991, p. 76]) transgressor do não-fálico (sem ser necessariamente oposta e simetricamente ao fálico) do que um simples gênero fechado que a literatura feminina não se restringe ao sexo do autor, pois ele ultrapassa, intersecciona e tangencia o autor para levá-lo a uma outra lógica de criação literária, de excessos e deslocamentos, que pode ser ao mesmo tempo prolixo e lacunar. A escrita erótica de Anaïs Nin traz o olhar feminino ao subverter a ordem masculina. No caso do conto Marianne, é o homem que se transforma em objeto do prazer e excitação da personagem título do conto, na medida que é ela a voyeur ativa (ela quem toma as iniciativas quanto ao sexo), enquanto o personagem masculino se apresenta como um exibicionista passivo, como pode se depreender no trecho “Quanto mais passivo era o comportamento dele, mais ela ansiava por tratá-lo com violência[3]” (NIN: 2006, p. 89). Na mesma forma, no plano da expressão, é a mulher quem narra a estória. É interessante que o personagem Fred só existe na medida que ele é narrado pelas mulheres: suas ações e suas memórias existem como fruto da narração de Marianne para Anaïs Nin e no momento que Marianne perde do interesse por ele, ele deixa de existir, no qual a estória termina com o foco da narração voltado para Marianne.

3 A LITERATURA menor em Anaïs Nin


Partindo desse pressuposto de que a escrita feminina não se constitui como um mero “gênero literário”, mas sim, encontrá-se no nível da poética, ou seja, como um modo especial de sentir e produzir os textos, entende-se então como a literatura feminina é uma uma literatura “menor”, ou seja, uma literatura feita por uma minoria em uma língua, que tenha uma potência revolucionária.

Segundo DELEUZE e GUATTARI (2015: p.35), “uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior”. Isso coloca em questão que a literatura menor não se torna sinônimo da literatura que é produzida em uma língua menos prestigiada. O que os autores apontam inicialmente é que o menor está no autor: aquele que pertence a uma minoria dentro da sociedade. No que tange à escrita feminina, Lakoff, como foi discutido anteriormente, já aborda ao fato da mulher ser “bilíngue”. No caso, a “língua” que uma autora irá utilizar na publicação não seria o de seu dialeto de gênero, mas a norma do gênero dominante na sociedade patriarcal, que é a norma masculina. Mais adiante, observa que literatura menor “não qualifica mais certas literaturas, mas a condições revoluncionárias de toda literatura no seio daquela que se chama grande (ou estabelecida)” (DELEUZE e GUATTARI: 2015, p39). Pode se observar que então que a literatura não se coloca como um “tipo” em si, mas a um “modo de produção” literário que é engajado que se opera em relação ao Cânone. Segundo Deleuze e Guattari, a literatura menor tem três características: “desterritorialização da língua, ligação do individual no imediato-político e o agenciamento coletivo da enunciação” (ibidem, idem).

Sobre a primeira característica, os autores descrevem que que “a língua é afetada de um forte coeficiente de desterritorialização” (DELEUZE e GUATTARI: 2015, p35). Ou seja, a língua utilizada na produção literária é redefinida a partir do local de fala do sujeito enunciador, que é pertencente a uma minoria. Como os autores irão falar mais adiante (ao se referir a Franz Kafka, um judeo theco que escrevia em alemão), essa desterritorialização surge de uma “impossibilidade de não escrever, porque a consciência nacional, incerta ou oprimida, passa pela literatura” (DELEUZE e GUATTARI: 2015, p35-36). A impossibilidade vem do fato em qual língua, em qual “território linguístico” pode ser utilizado pela para a produção da literatura menor. Não é na “língua menor” da minoria que produz os textos. É dentro de uma língua “maior”, da norma mais aceita  que se dá esse embate. Esse processo pode se dar tanto através do enriquecimento artificial da língua maior, no qual se usa recursos estilíticos da expressão da minoria que irão embelezar a expressão dessa língua como pode se dá pelo caminho oposto, o empobrecimento dessa língua, usando com sobriedade o idioma. Dessa forma, desterritorialização é compessada como uma reterritorialização nos sentidos. Anaìs Nin, no prefácio ao livro Delta de Vênus deixa isso, na medida em que questiona em que forma se expressa o erotismo feminino: “Conforme escrevi no volume três do Diário, eu tinha a impressão de que a caixa de Pandora continha os mistérios da sensualidade feminina, tão diferente da do homem e para a qual a linguagem masculina era inadequada” (NIN: 2006, p. 13)[4]. Mesmo sabendo desse ponto, a autora escreveu seus textos se baseando nos modelos já existentes da “língua masculina” que predominavam no gênero erótico, como ela afirma “Achei que meu estilo se derivava da leitura de trabalhos escritos por homens, e por esse motivo sempre julguei que houvesse comprometido meu eu feminino” (ibidem, idem)[5].

A segunda característica da literatura menor, segundo Deleuze e Guattari, é “tudo nelas [as literaturas menor] é político” (DELEUZE e GUATTARI: 2015, p36). Diferente das literaturas “maiores”, em que o caso individual dentro dos textos costumam a se unir frouxamente a outros casos individuais e o meio social (que é meio ambiente e pano de fundo) estão em espaço mais alargado no qual não se não estabelecendo sempre uma relação política, na literatura menor ocorre o contrário: “seu espaço exíguo faz que cada caso seja imediatamente ligado à política. O caso individual torna-se, então, tanto mais necessário, indispensável, aumentado ao microscópio, quanto toda uma outra história agite nela” (ibidem, idem). Ou seja, o enredo e personagens não estão lá apenas como um produto estético, mas se apresentação dentro de um contexto de relação e discussão política. Isso pode ser visto em Anaís Nin no conto Lilith, do livro Delta de Vênus, em que se conta a história de uma mulher frígida em que, um dia o marido teria pregado uma peça, oferecendo um pretenso afrodisíaco para estimulá-la e assim, mesmo depois de descobrir a verdade, a personagem feminina fica obsecada em conseguir um meio artificial que a excite sexualmente[6]. A busca pela prazer por parte na mulher pode ser interpretado como uma forma de luta feminista pela igualdade. O prazer sexual não seria algo restrito aos homens, mas também como um direito feminino. O sexual se imbrica com a própria condição feminina no início do século XX para expressar uma política do prazer que fosse mais progressista.

A terceira característica aponta por Deleuze e Guattari é

tudo toma uma valor coletivo. Com efeito, precisamente porque os talentos não abundam numa literatura menor, as condições de uma enunciação individual não são dadas, que seria a de um tal ou qual “mestre”, e poderia ser separada da enunciação coletiva (DELEUZE e GUATTARI: 2015, p. 37).

Ou seja, o que enunciado no texto literário menor não é apenas uma afirmação individual de um autor, emulado por algum “mestre” ou “expoente” da literatura. Antes, passar ser também uma enunciação coletiva e rizomática da própria minoria em que esse autor está inserido. O texto torna-se assim também uma expressão política com caráter revolucionário, pois irá ativar uma consciência coletiva que, por ser minoritária, se encontra em vias de desagregação. Deleuze e Guattari prossegue, afirmando que a literatura menor produz uma solidariedade ativa, no qual, estando o escritor “a margem ou apartado de sua comunidade frágil, essa situação o coloca ainda mais em condição de exprimir uma outra comunidade potencial, de forjar os meios de uma consciência e de uma outra sensibilidade” (DELEUZE e GUATTARI: 2015, p. 37). Como resultado disso, a literatura menor não será marcado por sujeitos individuais, mas por “agenciamentos coletivos de enunciação” (ibidem, p. 38). Em Anaïs Nin essa característica pode ser observada no já referido prefácio de Delta de Vênus, em que, quando ela resolve publicar suas histórias eróticas, ela o faz para mostrar “os primeiros esforços de uma mulher em um mundo que sempre fora dominado pelos homens” (NIN: 2006, p. 14)[7]. Assim, a autora pesquisada procurará expressar essa literatura erótica urilizando enunciados que estejam na coletividade feminina. Os homens não serão retratados dentro dos esteriótipos viris e forte que a literatura de autoria masculina, como pode se ver nessa descrição de Fred, personagem masculino no supra citado conto Marianne: nos trechos “A fala dele ficou enrolada. Ele corou. Parecia uma mulher, pensei” (NIN: 2006, p. 86)[8] e “Ele tinha um ar de fauno e um jeito esquivo feminino, que me atraíam” (ibidem, p. 87)[9].


4 considerações finais

Como pode ser observado ao longo do artigo, a escrita feminina possui características próprias e que irá influenciar na produção literária, conforme pode ser visto nos contos eróticos de Anaïs Nin.

A literatura feminina tem um escrita própria que faz com que essa literatura não se constitua como um tipo de gênero literário que tenha fórmulas e modelos pré-definidos. Antes, ela se apresenta como como uma “poética”, como um modo de produção estética e de criação literária que se centra na feminização da escrita. Embora essa escrita não se confunde necessariamente com o sexo do autor, mas mantém um estreita relação com o que se é construído socialmente como feminino (visto aqui no seu prisma transgressor que realiza rasuras na literatura marcada pelo patriarcalismo). Isso pode ser visto na forma que Anaïs Nin escreve sua literatura erótica, trazendo uma marca feminina em um campo que a tradição normalmente sempre foi visto como dominado pelos seres humanos do gênero masculino. Ela traz não só um olhar novo, mas uma expressão nova desse tipo de literatura.

E por trazer esse escrita feminina na criação literária se apresenta como uma literatura menor. Menor não por ser menos importante do que em relação aos escritos eróticos masculinos, mas expressão revolucionária da consciência e sensibildiade de uma minoria social. A literatura erótica de autoria feminina, como é a escrita por Anaïs Nin, desterritorializa da língua padrão “masculina” para reterritorializá-la através dos sentidos, tanto no na noção simbólica do significado como na noção física dos significantes. Também estabelece uma ligação seu imeditato-individual com o político, na medida que a estética também com os jogos de poder que existe na sociedade. E final, também se torna um agenciamento coletivo de enunciação quando essa literatura funciona como um meio de veiculação de ideias e significados da a minoria como um todo.

referências

ALEXADRIAN. A literatura erótica feminina. In: ALEXADRIAN, A história da literatura erótica. 2ª Ed. Tradução Ana Maria Scherer e José Laurênio de Mello. Rio de Janeiro: 

Rocco, 1993.


CASTELLO BRANCO, Lúcia. O que é escrita feminina. São Paulo: Brasiliense, 1991. (coleção Primeiros Passos v. 251)

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é uma literatura menor. In: DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka Por uma literatura menor. Tradução Cíntia Vieira de Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. Coleção Filô/Margens, pp 35-53.

FREITAS, Zilda Oliveira de. A literatura de autoria feminina. In: FERREIRA, Silvia Lucia e NASCIMENTO, Enilda Rosendo de (org). Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador: NEIM/UFBA, 2002. Coleção Bahianas v.7, pp 115-123.

LAKOFF, Robin. Linguagem e lugar da mulher. In: FONTANA, Beatriz e OSTERMANN, Ana Cristina (org). Linguagem. Gênero. Sexualidade: clássicos traduzidos. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. Coleção Lingua[guem] v.37, pp 13-30.

NIN, Anaïs. Delta de Vênus. Tradução Lúcia Brito. Porto Alegre: L&PM, 2006. Coleção L&PM Pocket, pp 84-95

NIN, Anaïs. Delta of Venus. Londres/Nova York: Penguin Book, 1990. pp 55-65

OLIVEIRA, Nelson de. Literatura feminina ou poética feminina? In OLIVEIRA, Nelson de. A oficina do escritor. Sobre Ler, Escrever e Publicar. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2008.

RICHARDS, Nelly. Diferença sexual, gênero e crítica feminista. In: RICHARDS, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. (Série Humanitas v. 81), pp 125-172.

ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Identidade e Subjetividade. In: ZINANI, Cecil Jeanine 

Albert. Literatura e gênero: a construção da identidade feminina. Caxias do Sul: Educs, 
2006, pp 19-48.






[1] Mestrando em Crítica Cultural pela UNEB – campus II. Especialista em Estudos Linguísticos e Literários pela UFBA. E-mail: ricardovidal@hotmail.com.br.

[2] No original em inglês “Clinical sex, deprived of all the warmth of love – the orchestration of all the senses, touch, hearing, sight, palate”, (NIN: 1990, p. ix). Fato contestado por Alexandrian, no seu livro “História da Literatura Erótica” (1994, p. 307): “estou convencido que o colecionador não existiu. Era um mito inventado por Anaïs Nin a partir de um mexerico de Henry Miller, um mito que lhe serviu de álibi para assumir sem culpabilidade seus fantasmas sexuais”.  Mais adiante no texto, Alexandrian cita Elizabeth Hardwick, afirmando que Anaïs Nin possuía “um apetite patológico para mistificação” e observam-se ou semelhanças entre uma psicanálise de grupo com as sessões de trabalho de Anaïs Nin e seus amigos na produção destas estórias eróticas a serem enviadas ao colecionador.

[3] No original em inglês “The more passive and undemonstrative he was, the more she wanted to do violence to him”, (NIN: 1990, p. 59).

[4] No original em inglês: “As I wrote in Volume III of the Diary, I had a feeling that Pandora’s box contained the mysteries of woman’s sensuality, so different from a man’s and for which man’s language was inadequate” (NIN: 1990, p. xiii)

[5] No original em inglês: “I believed that my sytle was derived from a reading of men’s works. For this reasom I long felt that I had compromised my feminine self” (NIN: 1990, p. xiii)

[6] Essa busca é mostrada no trecho “Porém, daquele momento em diante Lilith ficou obcecada pela ideía de que deveria haver meios artificiais de inflame-la. Tentou todas as fórmulas de que ouviu falar” (NIN: 2006, p. 82) [No original em inglês: “But from that moment Lilith was haunted by the idea that there might be always of arounsing herself artificialy. She tried all the formulas sher had heard about” (NIN: 1990, p. 54)]

[7] No original em inglês: “[I finally decided to release the erotica for publication because] it shows the beginning efforts of a woman in a world that had been the domain of men” (NIN: 1990, pp. xiii-xiv)

[8] No original em inglês: “His speech was tangled. He blushed. He was like a human, I thought” (NIN: 1990, p. 56)

[9] No original em inglês: “He had a faunish air and a feminine evasiveness which attracted me” (NIN: 1990, p. 57)

Biblioteca do Bardo Celta (Leituras recomendadas)

  • Revista Iararana
  • Valenciando (antologia)
  • Valença: dos primódios a contemporaneidade (Edgard Oliveira)
  • A Sombra da Guerra (Augusto César Moutinho)
  • Coração na Boca (Rosângela Góes de Queiroz Figueiredo)
  • Pelo Amor... Pela Vida! (Mustafá Rosemberg de Souza)
  • Veredas do Amor (Ângelo Paraíso Martins)
  • Tinharé (Oscar Pinheiro)
  • Da Natureza e Limites do Poder Moderador (Conselheiro Zacarias de Gois e Vasconcelos)
  • Outras Moradas (Antologia)
  • Lunaris (Carlos Ribeiro)
  • Códigos do Silêncio (José Inácio V. de Melo)
  • Decifração de Abismos (José Inácio V. de Melo)
  • Microafetos (Wladimir Cazé)
  • Textorama (Patrick Brock)
  • Cantar de Mio Cid (Anônimo)
  • Fausto (Goëthe)
  • Sofrimentos do Jovem Werther (Goëthe)
  • Bhagavad Gita (Anônimo)
  • Mensagem (Fernando Pessoa)
  • Noite na Taverna/Macário (Álvares de Azevedo)
  • A Casa do Incesto (Anaïs Nin)
  • Delta de Vênus (Anaïs Nin)
  • Uma Espiã na Casa do Amor (Anaïs Nin)
  • Henry & June (Anaïs Nin)
  • Fire (Anaïs Nin)
  • Rubáiyát (Omar Khayyam)
  • 20.000 Léguas Submarinas (Jules Verne)
  • A Volta ao Mundo em 80 Dias (Jules Verne)
  • Manifesto Comunista (Marx & Engels)
  • Assim Falou Zaratustra (Nietzsche)
  • O Anticristo (Nietzsche)